terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Há 5 anos é proibido prender usuários de drogas. Temos o que comemorar?

Por Sergio Vidal, exclusivo para o site do Cannacerrado*

Em outubro do ano passado comemoramos 5 anos da entrada em vigor da Lei de Drogas, a 11.343, de 23 de agosto de 2006. Uma das principais alterações trazidas por ela, em relação à anterior, é o veto à prisão de envolvidos em condutas relacionadas com o consumo de drogas, incluindo o cultivo para uso pessoal. Em outras palavras, a Lei de drogas passou a proibir a pena de prisão para os chamados “usuários”. Em março de 2007, poucos meses depois da entrada em vigor da Lei 11.343, o então Secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, Gal. Paulo Roberto Uchôa, chegou a declarar que condutas que não tenham interesse de mercância não podiam ser consideradas como tráfico e por isso, pela nova Lei, não deviam ser punidas com a prisão.
Nessa época, muitos ativistas pela legalização da maconha comemoraram, especialmente os que defendem o cultivo para uso pessoal como uma estratégia de redução de danos sociais e à saúde. Todos tinham a esperança de que, com a nova Lei, policiais, delegados, promotores, juízes e outros operadores do Direito adotassem a postura de maior tolerância com os usuários cultivadores, já que esses realizam suas colheitas com a intenção de quebrar o vínculo com o tráfico de drogas e o crime organizado. No entanto, na prática, não é isso que temos visto ocorrer.
Desde a nova Lei, tem crescido o número de casos de pessoas que cultivam para uso pessoal detidas e submetidas à acusações de tráfico. Tais acusações, na maioria das vezes, são baseadas apenas na quantidade de plantas e de flores prontas para consumo encontradas com os réus. Infelizmente, em crimes relacionados com maconha e outras drogas não tem prevalecido a regra de que o ônus da prova é de quem acusa. Nesses casos, os usuários que cultivam sua própria maconha é que têm sido obrigados a provar que não são traficantes, ao invés de serem os acusadores obrigados a apresentar provas concretas da existência do crime de comércio não-autorizado.
No mesmo mês em que a Lei 11.343 completou 5 anos, uma sentença proferida na 2 Vara de Entorpecentes do Distrito Federal tornou-se o maior exemplo dessa inversão de valores. Sativa Lover, como gostava de ser chamado, usuário, ativista pela legalização, que cultivava maconha para seu uso pessoal desde 2006, foi condenado há passar 7 anos e meio preso, sob acusação de tráfico. Apesar dos policiais e da promotoria não terem apresentado nenhuma prova de tal acusação, a não ser 76 plantas em estágio vegetativo, dos mais variados tamanhos, a maioria pequenos brotos, 4 plantas em estágio de floração, cerca de 500 gramas de flores pronta para consumo e 30 gramas de haxixe. Após meses de investigação nenhuma prova de tráfico foi apresentada. Mas, ainda assim, o Juiz achou melhor condenadar um “acusado primário e de bons antecedentes”, a passar mais de 7 anos no sistema penitenciário brasileiro. Porque, para ele, “não se pode considerar que tamanha quantidade pudesse se destinar apenas ao consumo pessoal do réu”.
Sativa Lover não tinha armas, dinheiro, conta bancária, anotações ou qualquer outro indício de enriquecimento ilícito. Ele só tinha plantas, flores e resina. Na época da prisão ele tinha 23 anos, estava desempregado e tinha abandonado a faculdade por não ter como pagar os estudos, situação parecida com a de muitos jovens brasileiros. Foi preso no dia 4 de junho e está desde então afastado da conviência da família e dos amigos, instalado numa penitenciária pública. Usuário há muitos anos, em 2006, no mesmo ano de aprovação da Lei 11.343, após ser agredido e humilhado por um traficante, decidiu que nunca mais iria comprar maconha. Desde então passou a estudar sobre cultivo, se relacionar com outros cultivadores, se envolver com a cultura do cultivo e com o ativismo pela legalização da maconha, que vem crescendo em todo país. Na sentença, o Juiz afirmou que “sua conduta social é péssima. Não trabalha, não estuda, enfim é um verdadeiro devoto da maconha. Indolente e imaturo, vivia à expensas do tráfico de maconha, enredado com outros adoradores da erva. São pessoas que entregam-se à causa (venda e consumo de maconha, e projetos de legalização da droga) como verdadeira finalidade de vida.”
Desde que as primeiras Leis sobre Drogas foram criadas, e até os dias de hoje, se baseiam no príncipio de que o objetivo central da Lei deve ser proteger o bem tutelado conhecido como “Saúde Pública”. Ora, cabem então algumas perguntas: Se Sativa Lover estava desempregado, tinha abandonado os estudos e supostamente estava num estado de devoção à maconha, será que a melhor forma de ajudar a ele, sua mãe e outras pessoas da sua convivência é mantê-lo encarcerado com criminosos dos mais variados tipos durante mais de 7 anos? Será que os usuários de maconha e outras drogas que eventualmente precisem de ajuda ou tratamento vão mesmo se tornar pessoas melhores se ficarem anos presos com sequestradores, assassinos, assaltantes, estupradores, estelionatários, dentre outros tipos de criminosos? Será que manter ele e a outras pessoas que tenham cometido condutas semelhantes afastados da sociedade vai de fato ajudar a proteger a “Saúde Pública”? Pessoalmente, acho que não.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou que julgará o mérito a respeito de se o artigo da Lei 11.343 que criminaliza as condutas relacionadas com o uso pessoal é ou não constitucional. Essa discussão está sendo feita em vários países do mundo, e já foi feita em muitos outros. Tudo indica que o STF optará pelo óbvio: adultos que utilizam uma substância em contexto privado estão, no máximo, atingindo apenas a si mesmos. Mas é preciso ficar atento, pois mesmo que o STF decida dessa maneira, ainda há muito o que fazer para colocar em práticas as mudanças necessárias acabar com a Guerra às pessoas que usam drogas.
Acho que já é mais do que hora de encararmos a realidade. Muitos usuários estão cultivando maconha para seu uso pessoal. Isso está se tornando cada vez mais comum e vai crescer mais a cada dia. Já existem muitas lojas especializadas nesse tema, sites e livros e, a própria Lei veta a prisão de usuários que cultivam, estimulando que esses procurem desvincular-se do tráfico. A questão agora é se vamos continuar passando a mensagem de que a policia e o Judiciário devem ser mais rigorosos com os usuários que cultivam a maconha que consomem do que com os que compram de traficantes, ou se vamos mudar não apenas a Lei no papel, mas principalmente na sua aplicação. Ou, pior ainda, se vamos continuar deixando essoas que mataram outras enquanto dirigiam sob a influência de álcool, ou políticos corruptos que roubam milhões de reais dos Cofres Públicos, responderem aos processos em liberdade ou serem sentenciadas à penas alternativas, enquantos usuários que se esforçam para deixar de financiar o tráfico de drogas continuarem sendo condenados injustamente com base em acusações sem fundamentos.


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Um abraço e até semana que vem!

* Esse texto pode ser reproduzido desde que citada a fonte e o link original.



Sergio Vidal é antropólogo e autor do livro Cannabis Medicinal – Introdução ao Cultivo Indoor   
Postado originalmente por Coletivo CannaCerrado em 20/02/2012.
(http://cultivomedicinal.com.br)

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