terça-feira, 25 de novembro de 2014

Além da vergonha, quanto custa um cigarro de maconha? [1]


Por: Gerivaldo Neiva *

 Aceitei calmamente ser revistada e o único pedido é que isto fosse feito por uma policial militar. Não gostaria que um soldado me apalpasse e nem que tocasse meu corpo. Tinha certeza que o cigarro de maconha seria encontrado naquela revista, mas pelo menos não seria tocada por mãos que não queria.
Era carnaval de 2014 em Salvador. O destino era o circuito Barra-Ondina e a galera havia marcado para se encontrar perto das “gordinhas”, no início da Avenida Ademar de Barros, e daí seguiríamos no sentido Farol da Barra, fazendo o contra fluxo para aproveitar um pouco de cada Trio Elétrico. Hoje era dia de “pipoca”. Nada de corda de blocos. Era dia de dançar e beijar muito.
Tinha saído do interior para Salvador de buzú com a galera para curtir o carnaval de Salvador. Como é bom ter mais de 18 anos e viajar sozinha. Ficamos todos os hospedados no apartamento de um brother que estava sozinho em casa, pois os pais não gostavam da fuzarca do carnaval e tinham viajado para a casa de praia no litoral norte. Massa! Um apê liberado, cerveja na geladeira, comida congelada no freezer, ninguém para controlar a hora de chegar ou sair. O paraíso é aqui e agora.
Há meses não “ficava” com ninguém, mas no carnaval isso é impossível não acontecer. Ao entardecer, um amigo do brother do apê “chegou junto” e rolaram uns bons amassos e beijos molhados na varanda. Faz parte do carnaval. Ao sair para a festa, percebi que aquele papel que ele tinha deixado no bolso do meu short era um cigarro de maconha. Massa. Não estava contando com essa possibilidade, mas já que caiu em meu bolso, seria devidamente aproveitado. Primeiro o carnaval, muitas latinhas de cerveja, depois um baseado, a larica, um sanduíche do tamanho do mundo e o sono perfeito.
Não havia razão alguma para aquela revista. Não me envolvi em confusão e andávamos normalmente pela rua quando a guarnição da PM resolveu revistar a galera. Não tinha como evitar. Correr seria pior. Quando a policial militar passou a mão no bolso do short percebeu logo, pelo formato, que se tratava de um cigarro de maconha. Seus olhos brilharam como se tivesse encontrado um troféu. Para livrar a barra de todos, o melhor era confessar que era para consumo pessoal e que os demais nem sabiam da existência daquele cigarro.
Fui convidada para ir ao posto policial mais próximo, não fui algemada e apenas a policial feminina pôs a mão em meu ombro. Ao meu lado, um policial militar franzino e de óculos me dava conselhos durante o trajeto até o posto policial: - maconha é perigosa e vai te causar mal, maconha é a porta de entrada para outras drogas, maconha vai causar estragos irreversíveis em teu cérebro e pode até te enlouquecer, o consumo alimenta o tráfico e causa a morte de outros jovens. Ouvi tudo calada, mas esta última observação quase me tirou do sério. Ora, o cara estava querendo me culpar pelas mortes causadas pelo tráfico!! Quem está apertando o gatilho e sob ordens de quem?
No posto policial, fui mais uma vez aconselhada sobre o perigo da maconha pela pessoa que me tomou o depoimento e, meio a contra gosto, terminei assinando um documento me comprometendo a comparecer perante um juiz de direito quando fosse intimada. Que chatice. Tudo isso por conta de um cigarro de maconha! Se soubesse, não teria dado bola para o carinha e, sem os amassos na escada, não teria rolado o baseado.
Estamos em novembro e só agora recebi a intimação para comparecer perante o juiz de direito e ouvir uma proposta de transação penal pela promotora de justiça. Soube na audiência que se tratava de uma carta precatória que teria sido enviada pelo Juizado Especial Criminal de Salvador para o fórum local. Indaguei mais sobre o caso e o juiz me disse, com dificuldades para me explicar a burocracia da justiça, que a apreensão do cigarro de maconha tinha gerado um Termo de Ocorrência e encaminhado para o Juizado Especial Criminal. Daí, o processo teria sido encaminhado para um promotor de justiça e este teria requerido ao juiz de Salvador que fosse enviada uma carta precatória para que fosse proposta uma transação penal pela promotora da cidade. Além disso, meu indefeso cigarro de maconha, pesando 1 grama, ainda foi encaminhado à polícia técnica para constatar que se tratava mesmo de maconha, ou seja, cannabis sativa. Pobrezinho...
A promotora de justiça me ofereceu as opções de prestação de serviço à comunidade ou converter em pagamento de multa. Evidente que não iria me submeter ao vexame de prestar serviço à comunidade por ter sido flagrada com um cigarro de maconha. Apresentei algumas desculpas para não prestar serviço à comunidade e a Promotora ofereceu a proposta de converter no pagamento de 200 reais em duas parcelas, que seriam destinadas a entidades filantrópicas da cidade. Melhor assim. Vou retirar de minha mesada e pagar duas parcelas de 100 reais. Caso não aceitasse, pelo que entendi, seria condenada por portar maconha para consumo pessoal, mas não iria para a cadeia. As penas seriam de advertência sobre os efeitos das drogas ou comparecimento a programa ou curso educativo.[2] Que coisa mais absurda e fora de moda!
No mesmo dia, ao fundo do salão em que se realizavam as audiências, havia dois rapazes algemados à espera de serem interrogados. Eram negros, tinham a cabeça raspada e usavam um uniforme azul, calças folgadas com elástico e uma camisa tipo bata. Não sei que crime cometeram e o que iria acontecer com eles, mas sei que minha cabeça saiu muito embaralhada e intrigada daquele lugar: por que preciso pagar 200 reais por ter comigo, para meu consumo, um baseado de maconha? Por que esses jovens estão presos e algemados? Por que não vivemos todos com paz e dignidade? Por que tanta violência e criminalidade?
Vou precisar fazer alguma economia para pagar a multa, mas imagino que a justiça gastou muito mais do que isso para resolver este caso. Além da polícia que me revistou e me conduziu para o posto policial, teve o pessoal que me tomou o depoimento e, pelo que entendi, o caso virou um processo na justiça e movimentou uma máquina enorme: funcionários, sistema de informática, papéis, perito, laboratório, promotor de justiça, juiz de direito, correio, mais funcionários, outro promotor, outro juiz de direito, o oficial de justiça que foi me intimar, esta audiência... Será por quanto ficou o preço final desse processo? Além da minha vergonha, quanto custa um cigarro de maconha para a justiça?
O Juiz me disse, na despedida, visivelmente constrangido em cumprir aquela tal de carta precatória, que tivesse cuidado ao usar maconha ou sair com cigarro no bolso. Não me recriminou e seu olhar era mais de cuidado e proteção. De minha parte, por mais que tivesse sido constrangedor tudo aquilo, continuo entendendo que não cometi crime algum, que não sou uma “pobre viciada” e apenas gosto de fumar maconha na companhia dos amigos em situações muito especiais e, finalmente, que não sou culpada pelas prisões e mortes causadas pela proibição e pela guerra às drogas.

* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)

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[1] É real o fato da apreensão, da Carta Precatória e da realização da audiência. O resto é ficção.
[2] Lei 11.343/06
Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

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Artigo postado originalmente em 21/11/2014, no link abaixo.